sábado, 24 de outubro de 2009

Iracúndia (Final)

Estamos chegando ao fim dessa série de postagens sobre a Ira...


SANDRA ENCONRA O BLOG!

Nos dias que se seguiram àquele evento inesquecível em 12 de outubro, Sandra percebeu que sua filha não era mais a mesma pessoa. Embora estivesse aos oito anos de idade, a menina já expressava frustração com a vida em seu olhar. Estava sempre calada, trancada em seu quarto, ou sentada sozinha em um canto. Nessa última semana, passou a chegar da escola com manchas arrouxeadas no rosto, feridas e arranhões inexplicados, dos quais se negava convictamente a prestar qualquer informação.

Sentada em sua cama, Sandra perguntava-se se aquela era a vida que ela havia sonhado par si desde sua infância. Sentiu-se só, sentiu sua vida perder o sentido. Lembrou-se que se estava agora separada de seu marido que tanto amou, é por causa das tantas brigas violentas que travaram. Será que tinha motivo justo pra gente brigar tanto?, ponderou. Além disso, estava agora cada vez mais distante de sua filha, a única pessoa que tem nessa face da terra. Sandra percebeu que havia algo de muito errado com ela. Mas o que pode ser?, refletiu. Que maldição é essa em minha vida? Que faz com que as pessoas que eu amo se afastem de mim, me abandonem, vão embora? Perdi meus pais tão jovem, meu marido me deixou e agora não sinto mais o amor de minha filha. Preciso de ajuda.

Sandra deitou-se em sua cama e passou a relembrar vários momentos de sua vida. Como um filme antigo de imagem desbotada, pode reviver momentos do passado, momentos de fúria. Momentos em que não via nada. Só lembrou que estava gritando, mas não lembra as palavras que dizia, se faziam algum sentido. Lembrou-se que ao final da discussão com seu marido naquele último natal juntos, estava tão cega de raiva, que não lembrava o motivo inicial da confusão que a levou a arremessar boa parte dos enfeites da árvore de natal contra seu marido, ante todos os convidados da família.

Lembrou-se das tantas surras sem motivo que desferiu contra sua filha, somente para saciar aquele fogo incontrolável que se acendia violentamente em seu interior querendo consumi-la.

Ao final de um longo momento de reflexão, tudo que lhe veio à memória foram momentos desagradáveis discutindo com seus pais na adolescência, intrigando-se das amigas da faculdade, fazendo inimizades no trabalho, hoje sua melhor amiga não fala mais com ela, gritando com seu marido, envergonhando-o publicamente, humilhando-o diante dos amigos dele, para mostrar-se superior. Você acha que é melhor do que eu? – lembrou-se de haver gritado, enquanto jogava todo o suco em cima dele, antes daquele café da manhã em família que nunca mais aconteceu. Lembrou-se das últimas palavras que ele disse antes de abandoná-la naquela manhã. A partir de hoje, me esqueça, sua descontrolada. Tudo o que você quer é afastar todo mundo de você. Para mim já chega, não aguento mais. E escreva: eu vou entrar na Justiça e minha filha vai morar comigo, você vai ver! Palavras que nunca cumpriu, contentando-se em visitar Luiza nos finais de semana.

Sem saber o que fazer, sentou-se diante de seu computador, na escrivaninha de seu quarto. Levou os dedos ao teclado, não fazendo idéia do que escrever, e pesquisou:

IRACÚNDIA!

Quase involuntariamente seus dedos pescavam no teclado as letras formadoras dessa palavra. E se ela estranhou estar pesquisando uma palavra que não conhecia o significado (se quer a tinha ouvido ser pronunciada algum dia), espantou-se ainda mais quando encontrou um blog com esse título, cujos personagens de uma história ali narrada, tinham coincidentemente seu nome e de sua filha.

Subindo a tela um pouco mais, leu um pequeno artigo sobre a ira e suas consequências. Mas deteve-se mesmo no final, onde havia três versículos da Bíblia, intitulados pela inscrição: NÃO DEIXE DE LER.

Pegou sua Bíblia grande, herança de sua avó, que guardava sobre o guarda-roupa, e começou a ler.

Sentiu sua mente clarear-se, um turbilhão de sentimentos aflorando em seu coração. Sentiu-se estranha porque tudo estava ali, tão patente diante de seus olhos, tão visível desde sempre, a obra de Jesus, a morte na cruz. Na verdade, o maior mistério do Universo, que ela não tinha encontrado nos tantos livros de auto-ajuda que leu, nas tantas literaturas de suspense descortinou-se perante seus olhos. O segredo da vida estava ali, completamente revelado para ela.

Ela fechou os olhos por alguns instantes, tentando absorver tudo aquilo, pensando bobamente na possibilidade de reabri-los, e aquelas palavras daquele Livro Antigo não estarem mais ali, mas estavam. Leu em voz alta, digerindo suavemente cada uma daquelas palavras maravilhosas.

Jo 3:16. Porque Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que n'Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

Percebeu que tinha sido presenteada por Deus. Sentia-se realizada. Sentiu a solidão esvair-se como uma névoa que reage fugazmente ao romper do sol. A sensação era ótima, de alegria, de alívio, de liberdade.

Olhou novamente para o blog, e constatou que uma nova mensagem era postada. O título era: SANDRA LÊ UM BLOG! Outra coincidência incrível!, pensou. Leu intensamente o conteúdo daquele texto, começando a avaliar que o seu nome no personagem não era uma coincidência, mas correspondiam em tudo, eram exatamente ela e sua filha. Ela mesma era o personagem daquela história inconclusiva. Sandra empalideceu, não entendendo nada, seu estômago congelara, ela viu-se em sérios apuros.

IRACÚNDIA (Parte final)

Vergonha e assombro agora dominavam os seus pensamentos. Seus piores defeitos estavam ali, expostos, para todos verem. Mas isso não é possível!O texto narrava até mesmo os pensamentos que ela acabara de ter deitada em sua cama, segredos que ela não revelara a ninguém.

Pouco a pouco, seus olhos se abriram para a verdadeira realidade que a circundava, disfarçadamente. Constatou que ela não era uma pessoa como as tantas outras que conhecia, feitas de carne, osso e pele. Descobriu que era apenas um conjunto de dígitos virtuais na tela de um computador. Olhou para a tela de seu próprio computador. Quer dizer que nada disso é real? Tocou com os dedos a tela e sentiu que era uma membrana líquida, como a superfície de um copo de água, só que um pouco mais densa.

Aproximou lentamente seu rosto da tela, até encosta-lo. Com os olhos fechados, fez sua cabeça invadir aquele líquido gelatinoso, no que pareceu ser um pequeno túnel. Mas ela não foi muito longe, havia uma barreira dura do outro lado, uma barreira de vidro. Sentiu que com o rosto imerso naquele líquido, a respiração era um pouco mais difícil que antes.

Ao abrir seus olhos, uma visão estarrecedora a fez tremer. Atrás de muitas letras invertidas, uma grande imagem distorcida aos poucos entrava em foco, revelando-se ser um grande rosto humano.

Realmente, do outro lado da tela, um rosto enorme a encarava impacientemente, se a estivesse lendo e a leitura estivesse muito cansativa. Essa pessoa está me lendo? E já não havia mais dúvida, alguém a lia, como se ela fosse uma história, como se a difícil vida que ela teve fosse um mero conto. Na verdade, naquele exato momento, várias pessoas a liam, e ela se deu conta disso, contemplando brevemente um a um.

Levou a mão à boca, a sensação arrepiando-lhe o dorso. Percebeu, não sabe como, que as pessoas que a liam estavam passando todos os dias pelos mesmos problemas que destruíram a vida dela. Era a ira cotidiana, incontida, desmotivada, que a arrebentou outrora.

Entendeu ali que sua difícil vida só teria algum sentido, se as pessoas que a liam entendessem, como ela, o grande mistério da vida, que ela descobrira um pouco antes, a verdade mais óbvia de todas, que esteve todo esse tempo diante de sua face e ela não viu, como os seus leitores também não viam.Há uma esperança, disse para si. Há um conserto, o Filho de Deus já resolveu o nosso problema.

Queria gritar, quebrar aquele vidro, fazer as pessoas entenderem que a ira sem motivo justo que as dominava, fazendo machucar os próximos, estava destruindo a vida delas também. Queria externar que deviam prezar pela boa vida que Deus lhes tinha dado, bem como tinha dado a ela e ela não soube aproveitar.

Queria alertar das terríveis consequências da ira, de como ela estava envergonhada por ter sido tão irasciva, em toda a sua vida, por ter prejudicado até a sua filhinha a quem tanto amava.

Queria proclamar a solução que ela havia encontrado: Jesus! Que Ele estava mais perto de nós do que aquelas pessoas imaginavam.

Mas estava muda. As palavras não saíam de sua boca, ela não ouvia nada que saísse de sua garganta, somente escutava aquele zumbido dos velozes impulsos de energia se deslocando, arrastando as letras que estavam se formando sobre seu rosto, os raios velozes de elétrons passeando pelos circuitos do equipamento eletrônico do qual ela também era parte.

Sentiu-se sem forças, impotente, pois não podia fazer nada pela vida de ninguém. Seus olhos marejaram. Sabia da verdade que arrebatou sua vida e não podia transmiti-la para ninguém. Estava fadada a ver todo mundo se destruir como ela o fez.

Nesse momento, lembrou-se das últimas palavras dos textos da Bíblia que leu... Deus amou... enviou seu Filho...

De súbito, uma fagulha de esperança brotou em sua mente, clareando-a como o alvorecer. Começou a perceber que nada que ela falasse com a sua boca seria ouvido por ninguém. As pessoas só podiam ler a vida dela.

Retirou seu rosto daquele túnel eletrônico, sentindo-se fortalecida por uma nova energia que invadia seu corpo, as lágrimas já escorriam em seu rosto, lavando as tristezas, as dores, o passado, tudo, exclamou: Jesus! Obrigado, eu entendi. Me entrego a Ti! Obrigado, o Senhor já fez tudo por mim, por todos nós, eu creio em ti e em tua grande obra!

Levantou-se abruptamente da cadeira, que se precipitou atrás dela debatendo-se ruidosamente no chão, e começou a correr. Atravessou aquele mesmo corredor no qual, três dias atrás, machucara violentamente sua filha, de modo tão cruel.

Lembrando-se disso, sentiu-se ainda mais forte, mais decidida, mais perdoada por Deus, sentia-se livre.

Aquele corredor tão curto, agora parecia interminável, enquanto dirigia-se ao quarto de Luiza. Sandra entendia agora o amor que sempre houve dentro dela, que ela havia escondido, reprimido, disfarçado sob a máscara do rancor, da ira. Queria agora explodi-lo aos olhos de sua filha, entrega-lo a ela sem economias.

Ainda chorando, Sandra entrou no quarto de Luiza. A menina levantou os olhos do livro que lia e encarou sua mãe, sem querer imaginar o que viria a seguir. Mas sentia no olhar de sua mãe que as coisas haviam mudado, que tudo era diferente agora.

Ouviu cada palavra de Sandra. Palavras que agora traziam vida e não mais morte, traziam alegria ao seu coração. Luiza guardou tudo que sua mãe lhe disse, como um ouro puro, imaculado, sentindo o amor de sua mãe em cada palavra pronunciada, conseguindo até entender melhor o amor de Deus que sua mãe descrevia, somente em olhar para ela.

Luiza entendeu o mistério da morte e ressurreição de Jesus, e creu.

Ao final, Sandra abraçou-a, retomando as lágrimas que já haviam cessado há algum tempo, e balbuciou quase sem voz:

- Filha querida, eu te amo, não quero nunca mais machucá-la por causa da ira, lindinha. Me perdoe, por favor!

A resposta já estava pronta:

- Não se preocupe, mamãe. As coisas velhas já passaram, tudo se fez novo. Jesus, foi Ele. Ele já nos deu o perdão! Eu também creio. Eu te amo, mãe.

2 comentários:

  1. A postagem ficou um pouco diferente das anteriores, mas a abordagem do tema foi muito boa...

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  2. Valeu, John, fico feliz que tenha sido esse o resultado. Que Deus nos abençoe.

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